Moradores temem perda de casas enquanto prefeitura busca retomada de terreno público

Moradores temem perda de casas enquanto prefeitura busca retomada de terreno público

Foto: Nathália Schneider (Diário)

Moradores do horto municipal vivem impasse com prefeitura em ação judicial de reintegração

Moradias construídas em áreas de risco ou irregulares que também podem ser objeto de grileiros por meio de vendas ilegais. Apesar do avanço das políticas públicas de habitação no país, estas práticas ainda são recorrentes e somam-se a outros problemas, como a condição de vulnerabilidade social das famílias e a projeção do espaço das cidades. Em meio a esse cenário, estão os processos de reintegração de posse. Em Santa Maria, existem 39 ações judiciais deste tipo em andamento movidas pela prefeitura.

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A reintegração de posse busca devolver ao proprietário a posse do imóvel ou terreno, em espaço privado ou público, que foi ocupado ou invadido. Para isso, é necessário comprovar a posse, a perda de um bem para terceiro e em que período aconteceu. As partes envolvidas podem apresentar provas e contraprovas, sendo que a decisão pode ser favorável à reintegração ou não.

Em Santa Maria, dentre os processos movidos pelo município, o caso do horto municipal tem gerado impasse entre a comunidade e o poder público. O espaço está localizado dentro da área do antigo Distrito Industrial, hoje denominado Parque Industrial e Tecnológico.

Apesar de não serem recentes as discussões em torno daquela área, a repercussão do caso aconteceu no final do mês de agosto deste ano. A partir de uma decisão judicial favorável à prefeitura, uma residência instalada no horto municipal foi reintegrada, sendo demolida por uma retroescavadeira.

No final de agosto, casa foi derrubada no horto municipal. Uma liminar favorável à prefeitura levou a reintegração da residênciaFoto: Nathália Schneider (Diário)

A ação chamou a atenção da vizinhança, já que esta foi a primeira casa reintegrada no local. O episódio motivou, inclusive, a realização de dois encontros para mediação entre moradores e prefeitura na Câmara de Vereadores. Contudo, nestas reuniões, não se chegou a um consenso entre os envolvidos. Isso porque tanto o poder público quanto a comunidade possuem entendimentos contrários no processo.

De um lado, o município destaca que, por lei, terrenos públicos não podem ser ocupados desta forma. Além disso, a prefeitura argumenta que aquela área é destinada apenas para instalação de indústrias, não sendo possível, assim, a habitação. Já a comunidade relata que os primeiros moradores estabeleceram residência a partir dos anos 1990, que muitos possuem produção para subsistência no horto e que não foi indicado um espaço adequado pelo município para realocação das pessoas.

A área

A região chamada, hoje, de Parque Industrial e Tecnológico de Santa Maria pertenceu ao governo do Rio Grande do Sul até 2010.

– O Distrito Industrial tem em torno de 40 a 50 anos e era todo do Estado, no início da fábrica da Coca Cola até a penitenciária. Era a antiga Fazenda Santa Marta, que foi dividida entre parte industrial e parte fundiária, que é para habitação (Bairro Nova Santa Marta). O Estado passava esses lotes para as indústrias, tanto que as primeiras que se instalaram abriram até as estradas – explica Elizandra Fagundes, secretária adjunta de Desenvolvimento Econômico e Turismo do município.

Cercamento que divide área industrial e de habitaçãoFoto: Nathália Schneider (Diário)

Posteriormente, teve início o repasse dessa área industrial de 323 hectares para o município. O processo foi feito em etapas e finalizado em 2017. Em 2015, ao invés da venda, começou a ser feita a concessão dos terrenos para empresas, mediante licitação e condições determinadas.

Atualmente, 40 indústrias estão instaladas no parque, distribuídas em três segmentos do espaço. A quarta parte do terreno ainda está em expansão e abrange o local em que estão as moradias do horto municipal, sendo que já há interesse de três empresas nesta área.

Advogada diz que reintegração é injusta com moradores

Atualmente, cerca de 80 moradores estão instalados em 29 residências no horto municipal. No processo de reintegração de posse em andamento, o grupo é representado pela advogada Márcia Furtado.

– A prefeitura alega esbulho (perda total da posse), mas esbulho não houve porque o município sempre teve anuência de que já existia moradores aqui desde 1989. A posse deles é uma posse antiga e velha, que não se presta para uma reintegração de posse. A segunda questão é que a Lei de Desenvolvimento Econômico, que prevê uma área de desenvolvimento para construção de empresas e geração de empregos, não abrange a matrícula do horto. Essa justificativa do município não serve para reintegração de posse e não serve para comover ninguém – argumenta a advogada.

29 casas foram construídas no horto municipal, área do antigo Distrito IndustrialFoto: Nathália Schneider (Diário)

Além disso, segundo Márcia, outro ponto que deveria ser observado com mais cautela pelo município é com relação ao direito à moradia. Para a advogada, ao optar pela ação de reintegração de posse, a prefeitura está sendo injusta com a comunidade:

– Primeiro, (o município) quer desocupar sem fundamentação jurídica para depois, quem sabe, fazer uma alocação desses moradores. O processo, se é que houvesse, deveria acontecer no sentido inverso. Primeiro, vamos estabelecer uma moradia digna para quem mora aqui. Eles precisam, porque muitos plantam, têm criação de animais, então, vamos ver onde conseguimos colocar eles para, depois, fazer a reintegração de posse. Isso seria mais digno e menos desumano, mas o município não tem essa preocupação – declara Márcia.

"Nunca tivemos intenção de ter meios lucrativos com essa área", afirma morador

Segundo a comunidade local, as primeiras residências do horto municipal começaram a ser instaladas no final dos anos 90. Os moradores relatam que muitas casas são antigas e foram passadas para gerações posteriores das famílias. Além da habitação, atividades relacionadas à produção de alimentos e animais também são feitas no local para subsistência e complementação de renda.

– Os moradores desde o princípio estão aqui. Muitos são produtores rurais para seu mantimento e, até mesmo, para complementação de renda. Eu moro aqui há uns seis anos, mas tenho antecedentes que já residiam aqui há uns 15 anos. Nunca tivemos intenção de ter meios lucrativos com essa área, mas, sim, ter moradia e um ganho para custear as despesas mensais – afirma Josiel José Luiz, funcionário de indústria, 26 anos.

Alguns moradores do horto municipal possuem plantações e criação de animaisFoto: Nathália Schneider (Diário)

Um dos residentes mais antigos, Ari Fontoura Teixeira, 58 anos, é produtor rural e também conta que familiares já moravam no espaço quando se mudou para o horto:

– Eu vim porque tinha uma criação de suínos no Boi Morto. Me inscrevi no Incra para ter uma área e consegui no horto. Meu tio já trabalhava aqui. Consegui trazer os bichos e estou com minha criação até hoje. Isso faz quase 20 anos – diz Ari.

Atualmente, o produtor divide a casa com outras quatro pessoas, incluindo crianças, sendo que a renda da família é oriunda do trabalho de Ari. Até o momento, ele já recebeu duas notificações para saída do imóvel, mas reforça que nenhuma alternativa viável foi oferecida:

– O problema maior é não termos segurança, porque a tendência é só destruírem o que construímos e produzimos. Não dão alternativa nenhuma para onde colocar meus animais. Me ofereceram uma inscrição nas casas populares, mas como eu vou sair dessa área que eu tenho criação para ir para uma casa popular? Já saí da vila antes por causa disso, então, não posso voltar para o mesmo "erro". Trabalho com suínos, tenho reciclagem também, sou de meia idade, não é fácil conseguir um serviço.

O sentimento de indignação e medo com o processo de reintegração de posse também é compartilhado por Josiel. Para ele, os moradores do horto sempre sofreram com o abandono do poder público, que tinha conhecimento das residências instaladas na área desde os anos 90. Um questionamento recorrente entre a comunidade é sobre o porquê da ação neste momento, sendo que as pessoas estavam no horto desde antigamente.

Realocação das pessoas

Os moradores lembram que, em 2005, catadores que trabalham no Lixão da Caturrita, foram alocados na área do horto pelo próprio município com serviços de água e luz, além do fornecimento de cestas básicas. Uma reportagem do Diário de 2008 demonstra que isso, de fato, ocorreu.

Em abril daquele ano, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) ingressou com uma ação civil pública contra a prefeitura pedindo a interdição imediata do lixão e a retirada dos catadores do local. No final de maio de 2005, a prefeitura e o projeto Esperança/Cooesperança formaram a Associação Vida Nova, no horto municipal, para oferecer atividades de geração de renda aos catadores.

– Para nós, é um ato de desprezo. Não temos intenção de lucrar em cima dessa área. A prefeitura tem muitas áreas que não utiliza, até mesmo no Juscelino Kubitschek, onde queria nos colocar, mas não deu um posicionamento se iam fazer ou não, simplesmente, era uma hipótese porque precisaria de infraestrutura, que, de momento, não teria. É uma eira sem beira – lamenta Josiel.

"Não vamos desistir de nenhuma ação e vamos fazer a reintegração de todas aquelas casas", reforça procurador-geral do município

O procurador-geral do município, Guilherme Cortez, salienta que terrenos públicos não podem ser invadidos. Ele também reforça que existem programas sociais de moradia em funcionamento no município:

– Área pública não pode ser objeto de usucapião e não pode ser invadida. O município tem um cadastro de habitação e também para destinação de moradias. O que não podemos permitir e estimular é a invasão e, às vezes, até especulação imobiliária, grilagem, que foi o que, eventualmente, aconteceu ao longo do tempo naquela área do Distrito Industrial.

Segundo Cortez, há um procedimento para a resolução destes casos que começa com a notificação sobre as condições ilegais da moradia. Neste primeiro momento, o procurador conta que já são identificadas dificuldades, pois o morador que recebeu o primeiro aviso não é o mesmo que recebe a segunda notificação e assim por diante.

– Aquelas pessoas já foram notificadas dezenas de vezes. É direito das pessoas, obviamente, se resignarem contra alguma decisão, mas por outro lado as pessoas têm que saber que elas estão ocupando irregularmente. O município precisa da área para ampliação industrial e essas pessoas tiveram várias oportunidades, já tiveram em habitações do município, e voltam a ocupar irregularmente, ou para vender ou para trocar. Não vamos desistir de nenhuma ação e vamos fazer a reintegração de todas aquelas casas – revela Cortez.

Foto: Nathália Schneider (Diário)

Atualmente, a prefeitura é autora de 39 processos de reintegração de posse em andamento. De acordo com Cortez, os casos envolvendo os imóveis ou terrenos públicos são custosos para todas as partes, mas necessários diante da ilegalidade envolvida na prática da invasão:

– Uma reintegração de posse é um cumprimento de uma ordem judicial dentro de um processo em que o oficial de Justiça cumpre a ordem do juiz com apoio policial e das secretarias municipais. Não é o município que vai lá e tira a pessoa à revelia. A reintegração de posse é uma ação judicial que tem que ser instruída, tem notificação, tem mandado, que envolve um aparato público estatal grande. É uma ação que custa muito ao município e não é simpático para a prefeitura tirar uma pessoa de uma casa. Se pensar pelo lado social é horrível, e politicamente é péssimo.

Indústrias interessadas

A secretária adjunta de Desenvolvimento Econômico e Turismo, Elizandra Fagundes, explica que o espaço ocupado pelos moradores do horto é destinado, exclusivamente, para a instalação de indústrias e, atualmente, três empresas já estão interessadas nesta área:

– Dependendo da atividade, a indústria tem que ter um distanciamento das residências. Não pode ter casa por perto porque tem poluentes. Tive uma reunião com a Fepam para pegar a licença de operação para fazer uma obra de pavimentação e drenagem do Distrito Industrial que não tem asfalto ainda. A pergunta foi: "E as invasões? Vamos ter que emitir uma licença tirando aquela parte?". A própria Fepam me disse que enquanto tiver com processo de reintegração de posse aquela parte não será destinada para indústria, vai estar trancada (para isso). No nosso projeto de expansão, já tenho três empresas interessadas naquela área. Preciso resolver, as famílias não podem estar ali.

Foto: Nathália Schneider (Diário)

​A secretária adjunta ainda comenta que, apesar da nomenclatura antiga de “Distrito Industrial”, aquela região da cidade não é semelhante ao restante dos distritos de Santa Maria, ou seja, lugares destinados para habitação:

– É um distrito, mas não é como o distrito de Pains, Arroio Grande, por exemplo, é um condomínio de empresas, é para ser fechado. Tanto que nem é chamado mais de distrito por causa dessa confusão. Agora é Parque Industrial e Tecnológico.

Secretário indica que há caminhos para moradia regularizada

O secretário de Habitação e Regularização Fundiária, Wagner Bittencourt, também aponta que a área do horto municipal não é destinada para moradia e que a prefeitura oferece soluções:

– Por mais que seja direito a questão da habitação, não é porque a pessoa invadiu a coisa pública que ela receberá uma premiação por isso. Temos um cadastro municipal de habitação ativo. Toda pessoa ou grupo familiar que necessite de moradia deve procurar a Secretaria de Habitação e fazer o seu cadastro.

Atualmente, 1,9 mil famílias estão cadastradas na prefeitura para receber uma moradia. Segundo Bittencourt, os moradores do horto poderiam ser incluídos nesta lista caso tivessem interesse e se adequassem aos critérios:

– O problema é que, desde a reunião na Câmara, apenas duas pessoas (do horto municipal) nos procuraram para fazer o cadastro de habitação. As demais não procuraram porque entendem que não se enquadram no cadastro habitacional e eu não tenho como forçar. Às vezes, não se enquadra porque a renda é maior, porque já possui outro imóvel em outro local e não quer abrir mão. O que é lamentável é pegar este cenário e fazer um palco de fantasia. A pessoa que necessita de habitação faz o cadastro e fica aguardando a sua vez, não invadindo a coisa pública, não tentando usar de outros meios para se garantir – diz o secretário.

Segundo Bittencourt, dentre alguns outros processos de reintegração de posse movidos pela prefeitura, estão a invasão da área pública do Jockey Club e de loteamentos populares, como Brenner, Cipriano da Rocha e Lorenzi.

Jockey Club

Localizado no Bairro Juscelino Kubitschek, o Parque da Jockey foi desapropriado há 10 anos devido a um histórico de dívidas. Somente no ano seguinte, o local se tornou um parque municipal por meio de um decreto. Desde 2013, com a desapropriação, o Jockey acumula planos e ideias que não foram efetivados ou apenas parcialmente executados.

– O fato de não ter efetivamente algum projeto, como tem o Distrito Industrial, não autoriza as pessoas a ficarem nessas áreas. Esse é o primeiro ponto. Por lá, tem pessoas que criam cavalos na área do município. É uma situação semelhante – adverte o procurador-geral.

Jockey ClubFoto: Nathália Schneider (Diário)

Atualmente, as moradias irregulares no Jockey Club foram construídas próximas às ruas Elvidio de Azevedo e Santa Maria Goretti.

– Muda o cenário e os atores, mas a história é a mesma: grilagem de área. No Jockey Club, os terrenos estão à venda (irregularmente) a R$ 5 mil – conta Bittencourt.

Moradias no Jockey ClubFoto: Nathália Schneider (Diário)

Loteamentos

Segundo o secretário, os loteamentos públicos também seguem essa tendência de venda ilegal de imóveis. Ele ainda fala que a maior parte deste comércio ocorre pelas redes sociais.

– Essa cultura de lote clandestino tem que acabar no município. Nestas áreas, foi dado destino diverso à unidade habitacional. Veja bem, aquela unidade habitacional foi construída com a função de atender uma família em situação de vulnerabilidade, mas as pessoas confundem com especulação imobiliária.

Semelhante às ações de combate a grilagem de imóveis e áreas públicas em outros locais do país, a prefeitura também pretende realizar operações desse tipo em Santa Maria:

– Estamos trabalhando e arquitetando uma ação para chamar o Ministério Público e a Polícia Civil, por exemplo. Uberlândia fez várias operações de combate à loteamento clandestino, Brasília, São Paulo, Santa Catarina também estão fazendo isso para acabar com essa cultura de invasão de área porque não deixa de ser um parcelamento de solo no momento que há invasão da área ou se dá uma outra destinação, ofertando o espaço de forma clandestina e completamente ilegal – anuncia Bittencourt.

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